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Memórias de um Proxy

domingo, 18 de janeiro de 2015.
As lágrimas da chuva escorrem pela superfície de vidro da janela melancólica do quarto. A penumbra entristecida dos postes das ruas fantasiam toda a minha vida, encubadas em um só momento. Uma gota de sangue. Uma gotícula de vida que corre pelas suas veias, repletas de hemácias. Seria eu esta gota pérfida? Seria eu um traço de sombra? Seria eu o grito que você exala antes de morrer? Quem sou eu? Sou a face do desencontro. Sou um cadáver despedaçado. Sou uma vítima meio-morta. Eu sou o profeta. Eu trago a boa nova.
É com essa breve reflexão que começo meu diálogo com vocês, meus impuros. Venho aqui pois já não mais vejo motivo em continuar nas sombras. Todos já me conhecem, e as sombras são desconfortáveis. Eu amo a notoriedade. Amo como vocês zombam do meu nome. E vou amar ver a surpresa de vocês.
O Edgar deve ter contado a minha história... mas ele não sabe de tudo. Ele não sabe nem de dez por cento da minha vida. Mas antes de tudo, vamos ao começo. Pois antes de ser conhecido como “Profeta Risonho”, meu nome era Daniel Salles.
Talvez seja frívolo dizer que devíamos começar do começo, porém algumas frivolidades se fazem necessárias nessa complexa arte de viver. Não importa o dia em que eu nasci, nem o ano. Nem eu mesmo sei mais quantos anos tenho. Em que ano estamos? 2013? 2014? 2015? Devo ter no máximo 20. Se lhes parece estranho o fato de eu não ter certeza acerca da minha idade, verão em breve que esse é o mínimo que alguém como eu podia sofrer.
Quando eu era mais novo, e ainda me chamava Daniel, eu tinha um irmão. Era uns três anos mais velho que eu, se chamava Lucas. Morávamos juntos, eu, ele, meu pai e minha mãe, na minha cidade natal, Balneário Camboriú, interior de Santa Catarina. Ele havia sofrido um acidente quando bebê, e vivia numa cadeira de rodas. Nunca lembro bem o que realmente houve. Só lembro da cadeira de rodas.
Éramos bem próximos, ele era um menino engraçado e bem-humorado, sempre fazendo piadas com tudo.
Foi mais ou menos quando ele fez doze anos que o evento trágico ocorreu: Lucas ficou louco. Foi o choque mais esquisito que eu já vi: ele estava na internet, lendo um dos blogs bizarros que ele tanto costumava rondar, quando ouvimos do quarto dele um grito. Toda a família correu, e encontramos Lucas no chão, gritando de pavor. Ele escondia a cabeça com as mãos, seus óculos estavam com as lentes rachadas, e ele parecia tentar se proteger de algo. Seu computador estava com o monitor quebrado, como se ele tivesse metido um soco na tela. Levamos ele pro hospital, pro psiquiatra, mas de nada adiantou: meu irmão estava em um pânico eterno, sempre repetindo sobre um cachorro demoníaco que o perseguia em todos os lugares, até mesmo nos seus sonhos, com um sorriso macabro e uma aura profana.
Pouco antes do Natal, lembro-me que entrava no quarto do meu irmão para chama-lo para jantar. Ele, em sua cadeira de rodas, me olhava com uma expressão de medo puro. Em suas mãos estava o revólver de nosso pai. Como ele pegou aquilo, eu não sei, pois sempre ficava em cima do guarda-roupas do meu pai. Eu estava assustado demais para fazer qualquer coisa, apenas observei em choque o meu irmão levantar o revólver e apontar o cano para a lateral da própria cabeça. Ele chorava, como se não quisesse fazer aquilo... “Lucas... vamos jantar... solta isso, por favor...” eu dizia, inocentemente com meus nove anos de idade. “Ele não vai me deixar em paz... ele não sai do meu quarto... ele não sai de perto de mim...” meu irmão me respondia. “Ele me falou de você... Daniel, me desculpe... você tem um trágico destino te esperando...” e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ele puxou o gatilho. O sangue espirrou na parede do quarto, junto com pedaços do seu cérebro. Por muitos anos essa cena ficou gravada na minha memória. Minha mãe entrou em depressão por vários anos, meu pai também. Até que mudamo-nos para Florianópolis. Passei o resto dos anos evitando todo tipo de contato com a sociedade. Não queria mais me aproximar de alguém para que a pessoa acabasse como meu falecido irmão. Me dediquei então à literatura, e a escrever. E foi assim até os meus catorze anos, quando eu conheci uma jovem que mudou para sempre a minha vida. Era a garota mais linda que eu já havia visto em toda a minha vida. Quer dizer, eu já havia visto muitas garotas bonitas, mas nenhuma se comparava aquela deusa de cabelos negros e olhos verdes. “Como é seu nome?” lembro que lhe perguntei. “Anna” ela respondeu “Anna Karenina”. Ela se interessava pelas minhas poesias, pela minha conversa, e finalmente depois de tantos anos eu senti a real felicidade. Era como se nós completássemos um ao outro.
Até que os sonhos começaram. Aqueles pesadelos pérfidos e agoniantes. Eu sonhava com meu irmão morto vindo me buscar, sonhava que era um garotinho de novo, e um homem muito alto segurava minha mão e me guiava por uma floresta... e me dizia “que sorriso lindo você tem, amiguinho... é tão bizarramente lindo...”
E pelos dias eu tinha aquela sensação de estar sendo observado, ouvia passos no jardim, via vultos nas janelas... a única coisa que me confortava era a presença de Anna Karenina. A única garota que realmente amei, e que consegui consumar esse amor em forma carnal... porém o medo crescia ao meu redor, e tudo piorou uma noite em que meu medo era tão grande que tive que invadir o quarto de Anna no meio da noite para me confortar no seu abraço. Porém seus pais acordaram e eu fui proibido de vê-la. Foi o início da minha perdição. Foi o início da minha loucura.
Comecei a vê-lo... aquele homem alto de terno e sem rosto... via-o em todos os cantos, pela janela, à noite...
Até que um dia ele me levou. Não sei bem pra onde. Nem sei como. Só sei que quando dei por mim estava em uma espécie de prédio abandonado no meio da selva extremamente fria, usando um grosso casaco preto que não era meu, encapuzado, com uma máscara no rosto. Ao meu lado estava uma mulher. Nunca vi seu rosto, então não sei quem era. Eu a chamei de “Vespa”. Ela usava um pesado e amarrotado casaco bege. Seus cabelos loiros e compridos viviam emaranhados e sujos. E seu rosto, sempre coberto por uma máscara veneziana branca que cobria seus olhos, usando um gorro marrom- escuro na cabeça. Ela nunca falava nada, porém ao contrário de mim que usava uma faca, ela matava suas vítimas com dentadas. Usava uma espécie de dentadura pontiaguda metálica em sua boca. Em volta de seus lábios havia sempre uma crosta grudenta vermelho-escura, que eu suponho ser sangue seco. Por isso mesmo, não reclamava dela não abrir a boca para mim. Nunca ouvi sua voz. Mas sabia que ela era escrava do homem de terno, assim como eu. Havia algo de errado ali. Ela não parecia humana. Quer dizer, ela era humana por fora, mas como se sua humanidade fosse somente uma casa... por dentro ela era algo muito mais profano... e eu... por que eu não era assim? Por que eu era tão consciente das minhas ações?
Com o tempo fui percebendo que minha consciência não era constante. Pelos dias eu quase não tinha controle das minhas ações, como se outra pessoa controlasse meu corpo. Pela noite... eu tinha um nível de lucidez maior, mas era sempre dominado por desejos de matar, e tentações.
A primeira pessoa que eu matei por ele me marcou.
Eu estava na entrada de um matagal em Florianópolis. Ela estava caminhando pela calçada, tarde da noite. Não lembro quantos anos tinha, mais devia ser uns cinco anos mais velha que eu. Ruiva. Usava óculos, disso eu me lembro muito bem. Andava apressada, olhando pros lados. Com certeza o homem de terno a estava perseguindo faz tempos. Ela passou por mim, mas eu me mantive quieto, escondido nas sombras, e a deixei avançar por algum tempo. Depois a persegui cautelosamente. Não sei de onde surgiu aquela minha habilidade de caminhar sem ser percebido, ou até mesmo de matar a garota. Eu simplesmente... fazia.
A cada passo que eu dava na direção dela, meu transe aumentava. Era como alguém com sede avançando em direção a um copo d’água. Eu estava muito perto, e propositalmente fiz barulho com os pés para que ela me notasse. Ela me viu e abafou um grito, e fez a burrice de correr para dentro da floresta. Eu quase soltei uma risada. Corri para o meio das folhas e me escondi. Ela parou de correr um tempo depois, olhando para os lados, perdida. Eu já não me aguentava mais: saí do meio das árvores, e a derrubei no chão. A sensação da minha faca perfurando a carne jovem e feminina daquela mulher valeu mais do que todos os prazeres desse mundo. Fui esfaqueando-a com força e brutalidade, enquanto ela gritava desesperada por ajuda. Mas ninguém a ouviria. Ninguém a ouviu. Quando ela morreu, iniciei um processo que, por mais que fosse a primeira vez que realizava, me pareceu extremamente familiar. Eu havia trazido alguns sacos plásticos comigo. Removi os órgãos dela, um por um, ensaquei-os, e pus os sãos dentro do corpo oco dela. Depois removi deus olhos e cortei fora sua língua, e a pendurei em cima de uma árvore. A imagem daquele cadáver lindamente trucidado está marcada até hoje em minha mente.
Os dias seguintes eu reunia toda lucidez que eu podia para ir visitar Anna Karenina. Houve pontos em que eu consegui gritar pelo seu nome.
Nas raras vezes que eu dormia, sempre tinha pesadelos. A maioria deles, com um garoto em uma cadeira de rodas que vinha me visitar, com a metade da cabeça estourada, e me perseguia por um labirinto infinito. E então eu acordava, suado e ofegando.
Estava eu então em uma fatídica noite em meio às ruínas do prédio abandonado, tentando evitar a presença maligna de Vespa, quando finalmente tirei minha máscara e a observei. Era uma máscara muito simples, completamente branca, parecida com aquelas de teatro. Aquilo não podia me representar... aquela máscara era meu rosto, e meu rosto não podia me representar assim...
Busquei uma lata de tinta preta que havia no porão e comecei a pintar, com o dedo, um dos olhos. Por usar muita tinta, duas gotas escorreram, formando algo parecido com lágrimas. Xinguei. Usei menos tinta no outro olho, e pintei em sua testa o símbolo do homem de terno: um círculo com um x no meio. Mas algo faltava... No momento lembrei do meu irmão. Ele dizia que um cachorro o perseguia, com um sorriso macabro... sorriso macabro? Aquela máscara seria uma eterna homenagem a meu falecido irmão: pintei então um sorriso bizarro na máscara. E ali, finalmente, estava algo que poderia me representar.
Lembro-me que ansiava para ver Anna. Já não aguentava mais vê-la dormindo. Precisava falar com aquela garota que mudou toda a minha maneira de ver o mundo... eu deixava recados para ela, codificados em forma de poemas, mas ela nunca, nunca me respondia.
Um dia, quando estava para terminar a madrugada, saí do prédio, e segui em direção à casa de Anna.
No caminho, senti que estava sendo seguido. O homem de terno estava atrás de mim, eu podia sentir. Mas eu não ia deixar ele tirar de mim a única coisa que me restara.
Cheguei em frente à casa de Anna Karenina, e como se estivesse me esperando, a vi na porta. Aquilo não podia ser coincidência. Devia ser cinco da madrugada. Quando ela me viu, se assustou, mas quando eu tirei a máscara ela veio correndo em minha direção, com os olhos verdes e arrebatadores cheios de lágrimas.
Nos abraçamos com força por alguns segundos, porém naqueles breves momentos o mundo pareceu parar: foi como se tudo de ruim da minha vida sumisse. Como se o calor de Anna Karenina me protegesse de todas as desgraças do mundo. Durante os breves segundos em que ela estava nos meus braços, a vida pareceu ficar mais feliz.
“Por onde você andou esse tempo todo?” ela perguntou com a voz chorosa
Eu não queria responder. Só queria ficar ali, abraçando-a, sentindo o seu perfume de baunilha, admirando seus lindos olhos verdes e passando meus dedos pelos seus longos cabelos negros como a noite.
“Eu estive com sérios problemas, Anna” respondi “Tudo aquilo que eu te contei... sobre o homem que me observava... você acreditava em mim, não acreditava?”
“É claro que sim, Daniel...”
“Eu estou preso a ele agora, Anna. Eu sou um escravo dele.”
“Escravo?”
“Eu... eu estou matando por ele...”
“Matando?!”
“Sim, mas... não é assim como você está pensando... quer dizer... todas elas merecem, entende? Não sei se o homem de terno sabe disso, mas... elas merecem morrer. E matar quem merece morrer é... gostoso.”
Permanecemos conversando por um tempo, até que eu tive que me despedir. Abracei-a com força, e por cima do ombro dela, vi seu irmão, Edgar, me olhando da porta da casa.

E os meses seguiram. Eu continuava matando brutalmente várias pessoas, uma por uma.
E no dia mais feliz da minha vida, Anna veio ao meu encontro. Ela chegou na porta do prédio, e gritou pelo meu nome. Sinceramente, você não sabe como é bom ouvir seu nome finalmente depois de tantos meses.
Corri para abraça-la, mas Vespa veio junto, e antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela atacou Anna Karenina. Foi um movimento rápido, e em apenas uma mordida ela arrancou metade do lábio inferior da garota que eu amava. Aquilo foi a gota d’água. E sem pensar duas vezes, eu ataquei Vespa com a minha faca.
Se você nunca viu uma luta entre dois proxies, não sabe o significado da palavra “luta”. Na verdade nem posso descrever aquilo com palavras, pois eu não conheço palavras em nenhuma língua humana que possa descrever aquela noite.
Em um segundo, nós estávamos em um local muito diferente: uma dimensão cinza, sépia, sem cores, em que diversas crianças nos observavam. O homem de terno estava ali, e eu entendi tudo: eles estavam assistindo a luta. Olhei para Vespa, e ela rosnou. Corri então em direção dela, para um combate incessante que durou muito, muito tempo. Não posso informar ao certo quanto foi, mas quando finalmente acabou, Vespa estava destroçada no chão à minha frente, eu estava de volta ao mundo real, e Anna Karenina me disse que passaram-se meses.
E havia algo diferente: minha lucidez. Minha consciência estava no auge.
Eu não sentia mais a influência do homem de terno sobre mim.
Peguei rapidamente Anna pelas mãos e corri dali.

“O que você está pensando?”
“Em nada demais. Continue jantando.”
Estávamos em um restaurante, comendo. Por motivos óbvios, eu havia guardado minha máscara, e trocado minha roupa suja de sangue.
Eu olhava para a mesa pensando em tudo o que havia acontecido nesses últimos meses. Eu não podia parar de matar. Finalmente eu havia achado uma vocação na minha vida. Matar pessoas que mereciam morrer era minha missão. E como eu sabia disso? Todas as noites eu vinha sonhando com o dia em que Ele iria se erguer. Aquele de sete bocas. Aquele que traz a desgraça. Todas as noites eu sonhava com o Zalgo. Ele viria. E eu sabia exatamente quem merecia vê-lo se reerguendo. Somente os puros podem vê-lo. E esse mundo estava repleto de pessoas impuras. Essa era a grande profecia. Essa era a minha missão.
Contei tudo para Anna. A boca dela ainda chamava muita atenção pelo grande buraco que estava onde Vespa lhe havia arrancado a carne, deixando sempre uma parte de seus dentes e gengiva à mostra.
Quando terminei de lhe contar tudo, ela me olhou com uma voracidade nos olhos. Vi naquela garota uma vontade sedenta de matar. Porém, ela se reteve.
“Com tantos assassinatos que nós precisaremos cometer, se esse assunto chegar na grande mídia, o que irão falar?” ela indagou
Refleti por um momento, e então sorri.
“Dirão o que deve ser dito. Dirão nada além da verdade. Dirão que pessoas estão morrendo na cidade.”
Ela pôs no rosto a máscara de enfermeira que afanou de alguma clínica. Eu cobri meu rosto com minha máscara, e peguei meu facão que estava guardado dentro do meu casaco.
Nos levantamos, e iniciamos nossa purificação ali mesmo, transformando aquele restaurante lotado, em um grande e lindo espetáculo sangrento.

E é assim que vivemos até hoje. Reuni alguns seguidores que contribuem para a minha causa, e juntos formamos os Profetas.
Anna Karenina, com seus olhos verdes e sua máscara de enfermeira, está em sua fase de treinamento, atacando principalmente nos hospitais do país, onde ela pode passar despercebida. Se algum dia você estiver internado em um hospital, tome cuidado com aquela enfermeira de olhos verdes que entra no seu quarto pela noite.
O Profeta Voraz, com sua máscara de gesso branca, onde está pintada uma bocarra preta e animalesca escancarada, e dois olhos negros. Ele é o nosso garotinho canibal. Ele irá amassar sua cabeça com um martelo, e devorar seu fígado em nome de Zalgo.
O Profeta Avarento, com seu rico robe dourado e sua máscara de raposa... você irá gritar quando acordar acorrentado na mansão dele, e ser torturado até a morte.
Ou ser estuprado pelo seu irmão, o Profeta Bizarro, com sua máscara de touro, seu sobretudo vermelho e sua faca de açougueiro.
Ou então, quanto a energia da sua casa acabar, ou simplesmente estiver tudo escuro, tome cuidado com a Profeta das Sombras, e sua cantoria mortal.
Todos somos os Profetas. Nós vamos cuidar para que quando Zalgo vier, somente os puros possam observar sua gloriosa chegada. E aqueles que são impuros devem morrer, e serem levados para servir-lhe de alimentos.
Todos eles seguem a mim, o seu líder. Não preciso falar de mim. Você já ouviu muito falar de mim. Eu sou o sorriso mais cadavérico das vítimas. Eu sou aquele te observa. Aquele que te guia até a arca. Aquele que infesta seu cadáver de vermes. Eu sou aquele que enfrentou a morte. Eu sou aquele que esfaqueou a vida. Eu sou aquele que vai te matar. Eu sou o Profeta Risonho.



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